[ Próximo a nós estava um condenado com as entranhas à vista, rasgado do nariz à garganta e com os intestinos pendurados entre as pernas]

Sentada assim, na cama do hospital, pouco lhe chegava. Obnulada ela ouvia em ausência plena o falatório histérico daqueles consangüíneos. Falavam amedrontados de métodos menos agressivos, pólipos, estadiamentos, choros, velas e anastomoses. Ela ali, impassível, a ler livros modestos e histórias pouco alegrinhas. Hoje guardava o pouco cabelo numa faixa roxa que laçava sua cabeça como uma atadura de guerra, ainda tinha senso de humor ainda que levemente oniausente. Folheava o livro molhando a ponta dos dedos magros de onde o anel insistia em não enrodear. Lia, lia enquanto a mãe poluía o quarto com frutas fora da estação [as preferidas dela] e com carinhos em alegorias várias. Não por compreensão ou por bondade, mas por sem vontade permitia os abusos alheios. Permitiu até o espelho, onde a apresentaram para o espectro. O espectro.

Cabeça quase nua, olhos esgueirados pelo fundo do crânio, alvo, calvo e magro. O espelho de expressão ausente lhe sussurrava atormentado:

[- Vês, tu, como eu me maltrato? Vês como Maomé e Ali estão desfeitos, gemendo, e todos esses semeadores de discórdias e heresias? Todos aqui são continuamente rasgados, cruelmente, por um diabo que aqui nos tortura eternamente. Em vão saram as feridas, pois logo ele volta e nos dilacera outra vez! E tu, quem és, tentando retardar a tua pena aí sobre a ponte?]


Delíria. A flor morta ao lado da cama sussura palavras de um livro velho.Ela, convalecida, firme na trajetória costurada em linhas brancas, riu: boca pálida e dentes secos, sem saliva. Pouco importa. Não desse mundo ela só havia ganhado o tempo, solicitado em ofício branco e timbrado, punição. Juíza de si não sustentava a morte pura e clara. Não podia ser simples assim. Guardava no corpo algumas recordações que contradiziam aquela asséptica falta de história - pulso aberto, desperto em vermelho vivo, só serviu como marca de rebeldia intolerante. O caso era mais sério, sabia. Abriu-se com consentimento oficial. Dissecada em vida exposta se dava á observação calma e dedicada de suas mazelas e alegrias. Quantas cores tinha por dentro? Lembrava-se com distância quase científica de arrepios na nuca, de face quente, de corações em disparates, de hiatos na fala embargada, de gargalhadas, lembrava do caderno velho, hoje no fim de seu guarda-roupas abandonado, onde na última página, escrito estava: .

Lembrava avaliando honestidade, a fim de extrema-unções pessoais. Sentia cada vez menos e convertia tudo antes cor agora em rígidas letras de hospitais. Passava pela sua cabeça agora o mundo lá fora sem ela, sem seu vago e translúcido vulto. Quando pequena imaginava que não havia mundo, para além de sua pequena e frágil presença, atlas que era em ombros. Hoje sabia bem, vagava sem muita pertinência, sem muitos desejos, nem urgências. Lidava com eternidades e com fatalismos tão típicos de sua condição.[ainda sobre a ponte, porém certa do caminho]. Agora porém chorava baixinho, ali no canto do quarto, escuro como o medo que sentia. Redimida e decepcionada riu com boca salgada do relógio na parede, do livro pela metade e dessas flores com esperançosas dedicatórias. Riu com dor sabida. Saudou a inevitável visita noturna. Respondendo á pergunta do espelho, da flor morta, ela própria, atônita, relembrou enquanto despedia-se entre os dedos:


[- Nem morte ainda o alcançou, nem culpa ordena que ele sofra aqui - respondeu Virgílio -, mas para que ele possa ter esta experiência, eu, que estou morto, devo guiá-lo por todo este inferno de giro em giro. Isto é tão verdadeiro como a minha presença aqui.

Quando ouviram essas palavras, mais de cem almas se aproximaram para me ver, quase esquecendo por um momento o seu intenso sofrimento.]




[ Divina Comédia, Canto XXVIII]

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